Em 2018 o IBGE divulgou que o rendimento total dos 80% mais pobres não alcançava o rendimento dos 10% mais ricos no Brasil. Além disso, quase metade da massa de rendimento médio mensal estava concentrada nestes 10% da população.
Se é difícil para as organizações se reposicionarem e sobreviverem diante da crise, não é diferente para a massa de pessoas que depende destas organizações ou que transita pela informalidade. Arrisco pensar que para elas – as pessoas -, em especial as que carregam as belezas e as durezas de uma geração que acreditava na previsibilidade, a dor pode ser muito pesada e o tempo curto demais para que se reiventem. Harari já apontou um risco maior do que a exploração: a irrelevância das pessoas para o trabalho, causada pela automação e pela dificuldade de acompanhar a volatilidade crescente.
Nestes tempos em que a gestão da crise ocupa maior espaço na agenda da liderança, além de pensar a sobrevivência das organizações, os líderes se ocupam da sobrevivência das pessoas. Há uma preocupação com a essência do humano, por um lado. Por outro, há uma visão racional de que trabalhadores são também consumidores. Se não houver trabalho não há renda e sem renda não há consumo. Sob qualquer ângulo, humanístico ou pragmático, há um olhar legítimo sobre a indissolubilidade da relação entre as pessoas e o sucesso organizacional.
Edgar Morin disse que deveríamos nos acostumar com o fato de que a única certeza é a incerteza. Ainda sim, nos deparamos com a surpresa de negócios e mercados inteiros estarem em colapso, e com eles as pessoas. Precisamos de líderes que possam transitar pelo efêmero, pelo transitório, pelo desapego e pela reinvenção.
Morin também fala que as crises trazem um paradoxo: ao mesmo tempo em que estimulam a criatividade e a inovação, pois nos arrancam da zona de conforto, da mesma forma nos levam a buscar uma nova relação de normalidade, um pós crise ou um “dayafter” que possa ser novamente domado. Mas o “Novo normal” é a incerteza.
Ao lado da velocidade da tomada de decisão nestes dias incertos, mais que nunca haverá a necessidade de dividir para multiplicar, de criar um sistema de governança que suporte a colaboração e a troca. Nossos líderes precisam compreender que diversos e juntos, estaremos mais ágeis e fortes, que nossa curva de aprendizagem ganha proporções únicas quando as pessoas trabalham juntas. E caberá a eles, numa perspectiva cada vez mais horizontal, apoiar a convergência de esforços das pessoas para a entrega de propósitos comuns.
Se liderar é, em diversas instâncias, exercer influências, é fundamental influenciar as pessoas para o futuro que queremos. Os grandes líderes transformacionais apontam a possibilidade de um mundo menos medieval, fora de uma zona de transição, mais adequado às aspirações humanas.
A crise nos faz questionar o que realmente importa, e resgata de uma forma profunda o lugar da identidade humana. Algumas escolhas, tão sólidas, são insuficientes para atender a complexidade destes tempos. É fundamental estabelecermos uma relação mais profunda com nós mesmos.
Talvez possamos aproveitar que as paredes caíram para reconstruir nosso modo de vida, nossos valores e nosso trabalho com um novo alicerce. Talvez, a separação antiquada entre vida e trabalho caia por terra também no imaginário das pessoas. Da mesma forma que acolher o filho no meio de uma reunião pelo Zoom já não parece algo antiprofissional, cuidar do que nos torna efetivamente humanos, numa relação de complementaridade com as máquinas, é o caminho. O incerto, o não previsto, o volátil e o complexo são partes comuns da vida diária.
Em “TwoChallenges: Crisis Management and Spirituality” Ian Mitroff, um dos grandes especialistas em crises organizacionais, afirma que a maior evolução que aconteceu no campo da gestão das crises foi o trato das contingências. Assim, tem sido mais fácil lidar com os procedimentos para tratar a crise do que preparar as organizações para questões éticas, por exemplo. Nenhuma crise é isolada, está relacionada com fatores internos e externos que extrapolam a objetividade das entregas do dia a dia. Para Mitroff, o que nos impede de nos preparar melhor é a negação. Negamos a nós mesmos e negamos aquilo que parece não nos afetar objetivamente. Negamos a nossa espiritualidade e negamos o incerto.
Para estes tempos e para os próximos que virão, precisamos cada vez mais de líderes da incerteza.